Eu-lírico do Blog

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São Carlos, SP, Brazil
Tenho um coração mais mole que sagu e muitos cachinhos que contam histórias. Do resto, sou metida, fresca e vivo no mundo da lua. Fim.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Angústia ou Um telefonema ou Três Tombos ou Livro e Chá

Já se passava da meia noite. Suzana não tinha em vista o telefone. Tudo o que lhe restava era um livro recheado de histórias tristes, uma xícara de chá e aquela angústia que tilintava em seu peito. Sabe-se lá que angústia. Angústia de que? Angústia de onde? 
Suzana não queria mais saber daquele livro. Nem do chá. Nem da angústia. Então, Suzana tentava se concentrar na tevê, embora não enxergasse nada ali. Eram apenas imagens aleatórias, inúteis. Imagens quase que transparentes tentando esconder a tal angústia. Mas não adiantava. A angústia era tudo o que Suzana via. E que angústia. E o telefone? Era preciso apenas um telefonema. Um alô. Uma palavra. Um sinal. A verdade é que nada daquilo era preciso. Mas era o que pensava Suzana enquanto procurava o telefone. E que procura.
A tevê chama a atenção de Suzana. “Modelo tomba na passarela”. Modelos tombam na passarela? Suzana precisa terminar seu chá. Seu livro. E a angústia? Como terminar com ela? Qual o problema em tombar? Um tombo. Dois tombos. Três. O telefone. Acho que não devo ligar. Mas é só uma ligação. E pronto. É só uma angustiazinha. E vai virar uma angustiazona. É melhor não ligar. Vou esquecer. É só tomar um chá. Ler um livro. Um, dois, três tombos. Quem liga? Todos tombam na vida. Não é só modelo não. É isso. A vida é uma passarela. 
E assim prossegue Suzana, cruzando a interminável noite. Já não lhe importava o chá. Nem o livro. Nem o telefone. Só lhe importava a angústia. É só um tombo. Afinal. Quem liga?

sábado, 14 de maio de 2011

A Gata Borralheira do século XXI

Era uma vez a história que não precisava necessariamente ter um final feliz. Embora tenhamos uma donzela que, segundo os estereótipos femininos, espera seu príncipe encantado montado em um cavalo branco, aqui nem tudo se resolve com um passe de mágica.
Nessa história, Cinderela sofre desilusões amorosas, neuroses e até TPM. Uma TPM daquelas, que nem fada madrinha pode resolver. A única solução plausível seria nossa mocinha se entupir de chocolate ou espantar o mau humor após meio litro de vodka barata. Melhor ainda se ela estiver com cólica, depois de um porre e algumas gotinhas de Buscopan, a dor e o mau humor vão direto para o espaço.
Quando a vida da nossa Cinderela está quase no eixo – pois anda sempre pendendo de um lado para o outro – sem ajuda de fada madrinha nem nada, nossa heroína vai em busca do mais lindo vestido. E, claro, andando pelo shopping, acaba encontrando um lindo par de sapatinhos de cristal que se encaixam perfeitamente em seus pés. Depois de aproveitar uma liquidação ou outra, Cinderela está pronta para ir ao encontro do seu príncipe encantado. E é a partir daí, que a história muda de cenário.
Ao final do período de provas de Cinderela e, finalmente, quando ela também recebe férias de sua patroa – ou madrasta -, ela tem bastante tempo para suspirar e se ocupar com as lembranças de um príncipe que nem cavalo tem. A Gata Borralheira do século XXI terá sorte se for convidada para o grande baile e puder dançar com o homem dos seus sonhos.
Mas não vamos ser pessimistas. Entre tantas decepções e fracassos, a mocinha da história é convida para o baile. E, sem abóbora ou ratos encantados, ela consegue chegar ao seu destino. Com o mais belo look da festa e a mais caprichada maquiagem, é claro que nossa Cinderela moderna desperta a atenção do seu “príncipe encantado”.
Eles dançam.
Eles se olham.
Eles suspiram.
Eles se beijam.
Eles se abraçam.
Ele faz as mais sinceras promessas de amor.
Ela? Se apaixona.
Agora, quer saber a maior semelhança entre a personagem principal dessa história e a Gata Borralheira que conhecemos ainda na infância? É simples.
Para ambas, a festa sempre tem hora pra acabar.

terça-feira, 3 de maio de 2011

O melhor de Tati

A história completa de Ritinha
Tati Bernardi

Ritinha fingiu a vida inteira mas nunca deixou de procurar a verdade. Sempre uma tosse de angústia na boca do peito. Sempre um motorzinho acelerado enjoado lá pro meio de algo que fica dentro. O olho ardia. A língua travava de vontade de mudar todo o discurso pronto e dizer apenas a verdade. Mas qual era a verdade? Então seguia fingindo. A vida inteira. Estudou um monte de coisa que se embaralhava na sua frente, mas fingia acreditar que aquilo a levaria para algum lugar. Um lugar com novos amigos e novos amores, talvez. Talvez essa fosse a verdade que purificaria tanta coisa sem sentido. Mas também não era isso porque, com esses amigos e amores, Ritinha seguia fingindo. De fingir estudar passou em tudo que fingiu se importar. De fingir curtir as festas e os amigos e aquilo tudo, Ritinha vivia em álbuns felizes e acabava feliz. De fingir amar, acabou chorando e doendo e escrevendo tantas coisas bonitas. Ritinha seguia fingindo o tempo todo. Às vezes, com medo de morrer soterrada por tanto teatro, Ritinha segurava firme no fundo dos olhos de alguém e dizia: a verdade é que, a verdade é que. E a pessoa, caso fosse assim como Ritinha, uma pessoa especial (porque quem procura essa verdade sempre é) só dizia: eu sei, eu sei. E era isso. Um momento especial, de verdade, sem a bola de pêlo presa na goela. Sem a tosse de angústia, tentando soltar algo pro ar entrar. Mas que algo? Mas que tosse? Então Ritinha ia ao psiquiatra e dizia não entender todas essas coisas como nuvens e casamentos e rodas fedorentas de caminhões bafando quente e infernal e abajures e cartões fidelidade e apostilas e tudo isso que acaba acontecendo porque acontece com todo mundo. Mas pra quem? Por quê? Qual é a verdade? Todos caminhando, todos com horários, todos de volta, cansados, o cérebro já bem gasto, agora podemos dormir, ufa, podemos dormir, pra quê? Pra amanhã mais e mais. E Ritinha ia. Como na hora do rush do metrô. Empurrada pela multidão sem verdade pra dentro de algo que leva pra algo. Pra onde? Eles precisam pagar as contas, eles precisam pagar o plano de saúde, diria sua mãe. Tá, e daí? Ter um problema sério nos ocupa de não ter o problema real. O problema real é que não dá pra calar a cabeça procurando a verdade. Que verdade? Quem inventou as nuvens? Porque as rodas de caminhões soltando fumaças quentes lembram tanto o inferno? E quem disse que a roda solta alguma coisa? Onde está a saída daqui? O tempo todo essa pergunta: onde está a saída daqui? Qual o caminho mais rápido para a minha cama, o silêncio, o escuro. Ritinha abraça as pernas, como criança, e se diz baixinho: não dá pra saber a verdade, não dá pra parar a cabeça, nada parece realmente o que é, hoje eu não disse o que realmente queria, aquelas pessoas não sentem aquilo que demonstram, eu pouco me importo com 70% dos preenchimentos do meu dia, mas é preciso chegar até amanhã. É preciso chegar. Ritinha se formou, trabalhou, namorou, viajou, casou, teve filhos, escolheu vestidos, escolheu pisos, escolheu tacos, escolheu flores, escolheu travesseiros, escolheu máquinas de lavar, escolheu o nome do neto, escolheu fazer a cirurgia, escolheu o sapato baixo, escolheu ver a novela ao invés do filme, escolheu dormir até mais tarde no dia que a empregada chegava mais cedo. Sem saber a verdade, Ritinha escolheu viver. No último segundo, até porque prometi que essa era a história completa de Ritinha, Ritinha descobriu algo que nunca mais poderá contar a ninguém. Só o que sabemos é que, em sua última sugestão do que seria a verdade, ela sorriu como sorrimos para um bebê quando ele se levanta bem compenetrado depois de desabar.