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Tenho um coração mais mole que sagu e muitos cachinhos que contam histórias. Do resto, sou metida, fresca e vivo no mundo da lua. Fim.

domingo, 25 de julho de 2010

O Problema do Goleiro

Ele não poderia ter tido uma infância mais infeliz. Abandonado pelos pais, ambos violentos, ambos transgressores. A mãe, usuária de cocaína, tentara matar uma mulher; o pai tinha sido, mais de uma vez, acusado de furto. Fora criado pela avó, em circunstâncias difíceis.
Como muitos pobres meninos brasileiros, depositara todas as suas esperanças no futebol. E, como alguns raros meninos brasileiros, conseguira transformar esta esperança em realidade. Tornara-se goleiro de um clube, ganhava muito dinheiro, era famoso. Um triunfo até simbólico: a vida, violenta e peversa, lhe desferia violentos petardos? Pois ele os agarraria de qualquer jeito, defenderia bravamente sua meta. Que viessem os inimigos.Que viessem com tudo, com seu poder, sua raiva, sua insolência, sua agressividade: por ele, bola alguma passaria.
Em suma, era um vencedor: morava bem, tinha bons carros, amigos. E, ah, sim, mulheres. Todas as que quisesse, as mais belas, as mais tentadoras.Foi assim que conheceu a bela modelo, e com ela viveu tórridos momentos.
E aí, nesta vida de sonho, pela primeira vez teve um pesadelo. Estava num campo de futebol pequeno, desconhecido. Nas arquibancadas, não a habitual massa de torcedores; ali estavam o pai, a mãe, a avó, os vizinhos pobres que conhecera na infância, todos a fitá-lo, imóveis, em silêncio. E. no gramado , um homem, que deveria ser o juiz - pelo menos tinha um apito -, mas que o mirava de maneira severa, como se fosse um juiz de tribunal.
Uma partida de futebol, decerto, mas estranha: não havia dois times em campo. Só ele, guarnecendo a meta; a sua frente, vestindo um grotesco uniforme esportivo, estava a moça com quem tinha um caso. Ela, seguindo as instruções do árbitro, estava colocando a bola na marca do pênalti.
Ele não conseguia entender o que se passava. Por que a penalidade máxima? Quem havia cometido a grave falta? Ele? Como? Mas isso não era importante. Um pênalti ia ser cobrado, e ele o defenderia. Chute de mulher? Brincadeira. Até de olhos fechados. Em casos assim, ele se colocava no lugar do adversário e procurava deduzir que canto da meta seria visado; quase sempre raciocinava corretamente. Astúcia para isso era coisa que não lhe faltava e o resultado era uma defesa brilhante. Agora, porém, tal não estava ocorrendo.
Os desígnios daquela mulher, uma mulher com quem dormira, e que julgava conhecer. lhe pareciam insondáveis. Não tinha a menor ideia do que ela faria. A fúria apossou-se dele. Só queria uma coisa: matar aquela maldita, acabar com o problema que ela representava. Se tivesse uma arma...
Acordou arquejante, suando frio. Aliviado, deu-se conta: aquilo não passara de um sonho mau. Suspirou fundo, virou-se para o lado, disposto a dormir mais um pouco. Mas nesse momento o telefone tocou. Atendeu. Era uma voz feminina, uma voz conhecida.
"Estou grávida", ela disse.

De Moacyr Scliar, colunista do jornal Folha de S. Paulo.

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